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Manual de comportamento para o transporte público paulistano

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Para ler ouvindo: Lugar errado, Autoramas

1. Da pressa: como se sabe, a pressa é inimiga da perfeição – o que faz de São Paulo a mais imperfeita das cidades. Todo mundo está sempre com pressa, por razões que não adianta questionar. Estar com pressa não faz o trânsito andar mais rápido, é verdade. Mas atrapalhar a vida dos outros também não. Por isso, a regra número 1 do transporte público (e da vida, na real) é a mais difícil de ser seguida em uma cidade de 11 milhões de habitantes: lembre-se de que existem no mínimo 11 milhões de pessoas além de você.

2. Da espera: A lembrança de que existem no mínimo 11 milhões de pessoas na mesma cidade além de você mesmo parece óbvia, mas é muito mais difícil do que parece. Isso começa pelas pessoas que possuem o talento de ficarem de pé, esperando o ônibus passar, exatamente no ponto em que ninguém mais consegue ver qual ônibus está para chegar, mas tão-somente a bunda dessa pessoa (principalmente quem está sentado no banco). Talvez essas pessoas nunca tenham percebido que a maioria dos usuários fica esperando do lado direito do ponto que é justamente pra não incomodar ninguém.

3. Das linhas do ônibus: Eu sei, as linhas de ônibus em São Paulo são confusas, e a prefeitura prefere superfaturar pontos novos e esteticamente corretos a instalar neles uma simples placa com uma simples informação. Mas não pergunte sobre qual ônibus passa por aquele ponto, porque nem os outros passageiros, nem o motorista dos ônibus que passarem vão saber, e se souberem, não vão te dizer. (Uma amiga sustenta a crença de que o paulistano, quando abordado sobre uma informação, diz “não sei” só porque essa resposta é mais curta do que a resposta de verdade.) Portanto, não pare o ônibus e muito menos bloqueie a entrada pedindo informação para o motorista. O Google Maps sempre sabe e não vai fingir que não sabe pra você.

4. Da catraca: infelizmente, a vida ainda está cheia de catracas. Conseguimos evitar o aumento da tarifa, mas ainda é preciso muita luta para arrancar as catracas de seus profundos parafusos no chão da nossa existência. Enquanto isso não acontecer, não trave a catraca. Todas as bolsas produzidas atualmente já tem um compartimento especial para o Bilhete Único e ainda aqueles R$3 trocados que você deixa pro caso do Bilhete Único estar sem crédito (não sei vocês, mas comigo acontece com frequência). Se você é aquela pessoa que fica procurando o bilhete no fundo da bolsa enquanto tem uma fila de gente esperando pra passar, algumas delas ainda querendo subir no ônibus, que vai ficar parado travando o trânsito e obrigando o ônibus de trás a desviar desse primeiro e impedir os carros de passarem pela outra faixa… Pois é, a gente odeia você.

5. Da trilha sonora: todo mundo já está cansado de saber que não se ouve funk alto no busão. (E, ainda assim, fãs do funk nos atormentam todos os dias no transporte público. E no privado, porque quem gosta de funk compra carro só pra ouvir funk no último volume e fazer as janelas do meu apartamento no andar térreo tremerem.) Mas, depois de passar o tormento de um dia de calor num ônibus descendo a rua das Laranjeiras repleto de peregrinos da Jornada Mundial da Juventude, comecei a refletir que seria melhor deixar muito claro que não se ouve nem se canta (nem toca, murmura, assobia… você entendeu) nenhum tipo de música no busão.E, principalmente, não se obrigam seus companheiros de infortúnio a ouvirem música evangélica, que, por definição, está no extremo oposto e portanto é tão ruim quanto funk.

6. Da escolha dos assentos: segundo a Divina Comédia de Dante, existe um círculo no inferno especialmente destinado para quem vê dois assentos livres juntos e escolhe se sentar no do corredor. Eu gostaria de crer que se faz esta escolha porque a pessoa vai descer logo – mas, como estamos cansados de saber, o conceito paulistano de pressa é muito controverso. Então não creio. Creio que a pessoa se senta no assento do corredor com o intuito explícito de desestimular os outros a sentarem do lado dela, já que é muito desagradável pedir licença e passar a bunda na cara de alguém pra poder sentar. Por isso, sempre que eu vejo cinco pessoas sentadas à janela e um único ser sem noção sentado sozinho no assento do corredor, faço questão de passar a minha bunda na cara dessa pessoa.

7. Da licença pra passar: como consequência do item anterior, também há uma dose de bom senso quando a pessoa ao seu lado, sentada junto à janela, se levanta pra descer. Perto do círculo do inferno em que mergulham até a cabeça os sujeitos que escolheram se sentar junto ao corredor há uma turma de diabinhos com garfos bem doloridos cutucando aqueles que, quando a pessoa ao seu lado quer descer, viram de lado e obrigam o outro a se espremer entre as suas pernas e o assento seguinte. Levante-se para deixar o outro passar, a não ser que você esteja num ônibus muuuito lotado em que isso vai criar mais problemas do que solução.

8. Das portas: se Freud baixasse aqui um dia e eu tivesse três perguntas para fazer a ele, uma delas seria a explicação para a obsessão do paulistano com a porta do ônibus ou do metrô. É uma obsessão de fundo sexual, sim: o paulistano abraça, acaricia, faz amor com a porta do metrô. Só isso explica alguém estar agarrado à porta do metrô ou do ônibus cinco pontos antes de descer. De certa feita, cheguei a testemunhar um rapaz que se pendurava para fora do ônibus só por um braço e uma perna para as pessoas poderem passar, em todos os pontos durante uma viagem inteira até Diadema, por puro amor à complicação, só para não sair daquela zoninha em que você atrapalha exatamente cada pessoa que quer descer. Pelamordedeus não é preciso ir para a porta a não ser que você desça no próximo ponto. Como pode um ser humano ser tão aflito a ponto de não confiar que vai conseguir abrir espaço para descer quando chegar o seu ponto e não pensar que nenhum dos seres humanos perto da porta vai descer no próximo ponto? Não é meio lógico que, se todo mundo fizer assim, o ônibus inteiro está vazio e 40 passageiros estão grudados na porta? Que sentido faz?

É claro que, numa cidade em que o transporte público é decente, metade dessas regras seria irrelevante ou desnecessária. Numa cidade com ônibus dirigidos por motoristas prudentes que passam regularmente com uma lotação razoável o convívio com as pessoas talvez fosse mais humano, e numa cidade em que prefeitos e vereadores utilizassem o transporte público longe das câmeras e da campanha eleitoral os ônibus talvez fossem dirigidos por motoristas prudentes e passariam regularmente com lotação razoável. Mas, se eu já comecei pedindo que os usuários do transporte público se lembrassem de que existem 11 milhões de pessoas além deles mesmos, talvez eu já esteja querendo demais da humanidade.

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